Michel Giacometti

diretor e etnólogo francês

Michel Giacometti (Ajaccio, Córsega, 8 de janeiro de 1929Faro, 24 de novembro de 1990) foi um etnólogo e coletor corso que fez importantes recolhas etno-musicais em Portugal.[1]

Michel Giacometti
Nascimento 8 de janeiro de 1929
Córsega, França
Morte 24 de novembro de 1990 (61 anos)
Faro, Portugal
Nacionalidade francês
Ocupação Etnomusicólogo

Existe na freguesia da Quinta do Conde, em Sesimbra, uma escola do ensino secundário com o seu nome.

Percurso editar

Tendo frequentado o Museu do Homem em Paris,[2] que o inspirou no gosto pela etnologia, Giacometti interessou-se particularmente pela música tradicional portuguesa: no museu encontravam-se arquivados registos da sua existência.

Sucede isso quando Henri Langlois[3][4] tinha já descoberto e salvo muitos filmes esquecidos, uma boa parte deles cruciais na história do cinema, além de velhas máquinas de filmar e projetar, uma grande quantidade de adereços e manuscritos de peças de teatro que depositou no Museu do Homem. É de admitir que, com certas diferenças, o desejo de salvaguarda de tais bens culturais tenha de algum modo influenciado o esforçado Giacometti[5], que se empenharia no culto das artes populares em Portugal, enquanto o pioneiro Langlois se rendia a outra divindade em França. Langlois é nessa época estimado no seu país pela pura devoção a um ideal fundador, indiferente a tudo o resto. Giacometti é «herói nacional», «um dos cérebros que levou à derrocada o regime reinante, num país sob ocupação, alguém que organizou, por entre riscos e perigos, a fuga de milhares de militantes clandestinos, o que o levou à prisão».

Veio viver para Portugal em finais de 1959. Veio doente, com tuberculose, para um país em que imperava uma das ditaduras típicas da época, serôdia e hipócrita, sorrateiramente mais branda que aquela que assolava a terra de onde amarguradamente vinha. Antes de chegar, empenhara-se na Missão Mediterrâneo (Mission Méditerranée 56, ano de 1956), trabalho de estudo e recolha da música tradicional das ilhas do território onde nascera. Uma vez chegado, o cheiro do mar leva-o a instalar-se no piso mais elevado de um edifício ribeirinho de Cascais, no meio de casas de pescadores.

Pouco depois de chegar, apresentou à Fundação Calouste Gulbenkian, à recentemente criada Comissão de Etnomusicologia, um projeto de recolha de música popular do Nordeste Transmontano, pedindo apoio, que lhe foi negado. Manuela Perdigão,[6] que trabalhava na fundação, passou-lhe uma carta de recomendação dirigida a Fernando Lopes-Graça. A 23 de maio de 1960, perante tais obstáculos, Giacometti informou Lopes Graça que avançaria sozinho, com alguns apoios nacionais e internacionais. Tenaz, consegue fundar os Arquivos Sonoros Portugueses (outubro de 1960).[7]

Produz então uma série de programas radiofónicos sobre a música tradicional portuguesa para a Emissora Nacional, Radio France, WDR (Rádio da Alemanha Ocidental), Sveriges Riskradio (Estação pública de rádio da Suécia).

E visto que na tradição popular a música não dispensa a palavra, envolve-se ainda na pesquisa e salvaguarda da literatura oral (ver por exemplo a cantiga José embala o Menino), a par com a musical, país fora, a partir de 1965. Integra a equipa de investigadores da Faculdade de Letras de Lisboa, Instituto de Geografia, no projeto Linha de Acção de Recolha e Estudo da Literatura Popular.[8][9]

Fixa-se entretanto em Bragança. Percorrendo o país nas décadas seguintes, até 1982, gravou músicas tradicionais de cantores do povo, que as usava como incentivo lúdico durante o trabalho, tornando-o mais leve e na prática mais eficaz. Seduzido pelo encanto do artifício, acaba por lançar, com a colaboração de Fernando Lopes-Graça, a "Antologia da Música Regional Portuguesa", os conhecidos “discos de sarapilheira”, coleção editada pelos Arquivos Sonoros Portugueses. Recolhe também importantes dados sobre o teatro de marionetes.[10]

A partir de 1970 dirigiu na RTP, durante três anos, o programa O Povo que Canta[11] com filmes realizados por Alfredo Tropa, dando assim a conhecer ao país uma considerável diversidade de cantos de trabalho,[12] um frágil património imaterial em vias de extinção.[13] Dirige em 1975 o Plano de Trabalho e Cultura[14] (recuperar a cultura popular portuguesa, com estudantes do Serviço Cívico e com a colaboração dos professores Jorge Gaspar, Machado Guerreiro e Manuel Viegas Guerreiro).[15][16][17]

Em 1981 foi editado pelo Círculo de Leitores o Cancioneiro Popular Português, que contou também com a colaboração de Fernando Lopes-Graça. Em 1987 foi inaugurado em Setúbal, por sua inspiração, o Museu do Trabalho.[18] O museu beneficiou bastante da intervenção de Giacometti graças à exposição "O Trabalho faz o Homem". Reúne uma vasta coleção de instrumentos agrícolas e de objetos por ele recolhidos. O museu passa a denominar-se Museu do Trabalho Michel Giacometti. Renovado, abre a 18 de maio de 1995.[19][20][21][22]

Giacometti, «o andarilho», o «senhor de cabelo e barbas brancas que chegava de burro», morre em Faro no dia 24 de novembro de 1990. Está sepultado, por vontade sua, transmitida ao dirigente do Partido Comunista Português Octávio Pato[23], na terra seca da pequena aldeia de Peroguarda,[24] no concelho de Ferreira do Alentejo. Algum do espólio de Giacometti pode encontrar-se também noutros locais, como no Museu Municipal de Ferreira do Alentejo, no Museu da Música Portuguesa (Casa Verdades de Faria,[25] no Monte Estoril) e ainda no Museu Nacional de Etnologia.

Ilustrando noutra perspetiva os méritos do seu trabalho, é realizado em 1997 o documentário Polifonias - Pace é Saluta, Michel Giacometti,[26] de Pierre-Marie Goulet.[27] A 9 de junho de 2002, foi agraciado, a título póstumo, com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.[28] Em 2004 é lançado o livro "Michel Giacometti - caminho para um museu", aquando de uma exposição organizada pela Câmara Municipal de Cascais. Em 2005 tem lugar na Córsega, no Festival Cantares de Mulheres e Instrumentos do Mundo, uma homenagem a Michel Giacometti,[29] que conta com a participação de Amélia Muge, Gaiteiros de Lisboa e Mafalda Arnauth. Ilustrando ainda tal trabalho, é inaugurada a exposição "O Campo e o Canto" com fotografias de António Cunha.[30] O Setor Intelectual de Coimbra do Partido Comunista Português organiza um "Reencontro com Giacometti", num ciclo de comemorações, entre janeiro e outubro de 2009, cinquenta anos após a sua chegada a Portugal e oitenta depois do seu nascimento.[31] É iniciado em 2016 o Projeto Michel Giacometti, homenagem prestada pelo grupo português Quarteto ARTEMSAX.[32]

Discografia editar

  • Música tradicional Portuguesa – 12 obras fonográficas / 24 discos (1960 - 1983) (ver Música de Portugal)
  • Antologia da Música Regional Portuguesa – 5 discos (1960-1970)
  • 16 discos sobre a música de Portugal continental:

Antologia da Música Regional Portuguesa editar

O primeiro volume intitula-se "Cantos e danças de Portugal". Os seguintes são dedicados ao "Minho", "Trás-os-Montes", "Beiras" e o último ao "Alentejo e Algarve".

Os "discos de serapilheira" [43] são editados em pequenas tiragens. Os discos da Antologia são divulgados em França pela editora Chant du Monde.[44] Uma seleção dos discos 1, 2 e 3 surge em Visages du Portugal, Le Chant du Monde (LDX A 43).[45] Em 1998 os discos em vinil são reeditados em CD pela Strauss (que se tornaria a Sassetti[46]) e em 2008 pela Numérica.[47] [48]

Repositório editar

Cinema editar

  • Alar da Rede (Michel Giacometti, 14 min. 24’’, 1962) - Ver online' introduzindo no motor de busca a frase seguinte : Youtube Alar da Rede Michel Giacometti RTP [49][50]
  • Cantos de trabalho 2 – 1972 (Michel Giacometti, 21 min. 1972, 1962) -
  • Povo que Canta série de documentários da RTP realizados por Alfredo Tropa sobre o trabalho de Michel Giacometti (total 1h 14 min.)[51]
  • Michel Giacometti – a Herança: um dos episódios desta série contém um comentário histórico de José Mário Branco (a partir dos 3 minutos) em que este destaca, como resultado das recolhas de Giacometti, em particular em Trás-os-Montes, que «alguma coisa estava a mudar nas nossas vidas», isto é, na criatividade dos jovens cantores portugueses. (Para aceder ao episódio introduzir esta frase no motor de busca: youtube Michel Giacometti a Herança) [52]

Notas e referências

Notas

Referências

  1. Le pionnier de l’ethnomusicologie portugaise nous a quittés : Michel Giacometti (1929-1990) – artigo de Anne Caufriez, Chaiers d’ethnomusicologie, 5 | 1992 : Musiques rituelles, p. 247-255
  2. Exposer l'humanité - race, ethnologie et empire en France (1850-1950), na pág. do Museu do Homem
  3. GRAÇAS A HENRI LANGLOIS – ciclo na Cinemateca Portuguesa, 13 de setembro 2014
  4. Faire-Part: Musée Henri Langlois – referência ao filme de Jean Rouch no Cinecartaz do jornal Público
  5. Michel Giacometti – longa militância pela cultura e pela transformação da vida – notícia no jornal Avante nos 35 anos da publicação do Cancioneiro Popular Português (1981-2016), 7 de janeiro 2016
  6. Manuela Perdigão
  7. EB 2,3/S Michel Giacometti
  8. «Romanceiro da tradição oral». Consultado em 27 de novembro de 2017. Arquivado do original em 1 de dezembro de 2017 
  9. Grupo de Investigação 8 - Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro Arquivado em 1 de dezembro de 2017, no Wayback Machine. (recolhido no âmbito do Plano de Trabalho e Cultura dirigido por Michel Giacometti, 27 de novembro de 2009)
  10. Vitalité des formes anciennes du théâtre de marionnettes au Portugal: le cas des Bonecos de Santo Aleixo – texto de Christine Zurbach, Centro de História da Arte e Investigação Artística (CHAIA), Universidade de Évora
  11. O povo que ainda canta
  12. Canto de trabalho em Terra Mater
  13. CANTOS DE TRABALHO em imagens da RTP
  14. Arquivo Digital da Tradição Oral no Fundo M. Giacometti
  15. Manuel Viegas Guerreiro, artigo de Maria Fonseca e de Francisco Ferreira, Finisterra, XXXIII, 65, 1995, pp. 7-10
  16. Michel Giacometti e o Plano de Trabalho e Cultura - Serviço Cívico Estudantil
  17. Registo da festa de Santa Cruz na Aldeia da Venda, no concelho de Alandroal, «uma celebração que faz parte do ciclo das Festas de Maio, ou Festas da Primavera, tradição que se perpetua desde a antiguidade.» Produção RTP com realização de Alfredo Tropa
  18. Museu do Trabalho Michel Giacometti
  19. Museu do Trabalho de Setúbal[ligação inativa] « O Museu do Trabalho de Setúbal, que, em homenagem ao seu fundador e após a sua morte em 1991 passou a denominar-se Museu do Trabalho Michel Giacometti, abriu as portas ao público a 18 de maio de 1995. »
  20. Museu do Trabalho Michel Giacometti Arquivado em 1 de dezembro de 2017, no Wayback Machine. em This is Lisbon
  21. Centro de Memórias do Museu de Trabalho Michel Giacometti Projeto ao “Encontro da Memória através do Património” – artigo de Maria Miguel Cardoso em Medi@ções
  22. Michael Giacometti – a descoberta de um povo em 80 anos – referência a uma exposição no Átrio Saldanha
  23. Michel Giacometti – longa militância pela cultura e pela transformação da vida artigo do Jornal Avante de 7 de Janeiro de 2016
  24. Viagem sentimental “A 25 de Novembro de 1990, dia de chuva branda, uma aldeia alentejana saiu à rua”
  25. Casa Verdades de Faria Arquivado em 13 de abril de 2018, no Wayback Machine. – declaração de legado
  26. Polifonias - Paci é saluta, Michel Giacometti (1997) em CINEpt
  27. Pierre-Marie Goulet na UBI
  28. «Cidadãos Estrangeiros Agraciados com Ordens Portuguesas». Resultado da busca de "Michel Giacometti". Presidência da República Portuguesa. Consultado em 23 de agosto de 2019 
  29. [http://www.gaitadefoles.net/imprensa/giacometti_heranca.htm A herança desconhecida] – artigo de António Henriques no semanário Expresso, 6 de março de 1999 (homenagem em Ajácio, Córsega), iniciativa da Câmara Municipal de Cascais
  30. Antóno Cunha e a projeção de dois filmes de Pierre-Marie Goulet no Sapo
  31. Michel Giacometti – longa militância pela cultura e pela transformação da vida – artigo no jornal Avante, 7 de janeiro 2016
  32. Projeto Michel Giacometti, «trabalho de parceria entre o Quarteto ARTEMSAX e o compositor Lino Guerreiro, que conta com a participação especial de Grupo Coral Ausentes do Alentejo, os Bardoada - o Grupo do Sarrafo, Marco Fernandes (percussão), Paulo Machado (acordeão) e Trio de Cordas de Palmela»
  33. Trás-os-Montes
  34. Algarve
  35. Minho
  36. Alentejo
  37. Beira Alta - Beira Baixa - Beira Litoral
  38. Entrevista com Giacometti
  39. Oito Cantos Transmontanos
  40. Bailes Populares Alentejanos em Covil do Vinil
  41. Cantos Religiosos Tradicionais Portugueses
  42. Música Regional Portuguesa
  43. O Mistério Giacometti, artigo de José Alberto Sardinha no semanário Expresso
  44. Chant du Monde
  45. Lista Arquivado em 1 de dezembro de 2017, no Wayback Machine. no Museu da Música Portuguesa[ligação inativa]
  46. Sassetti
  47. Célebres LP de capa de serapilheira de Giacometti e Lopes-Graça editados em CD, notícia na Lusa, 19 de abril 2008
  48. Descrição do conteúdo da caixa dos discos em vinil: Volume 1, Volume 2, Volume 3, Volume 4, Volume 5, Volume 6, Volume 7, Volume 8, Volume 9, Volume 10
  49. CIT nota da RTP: O filme Alar da Rede é rodado em 1962, no mar, a bordo da Nicete, uma traineira do porto de Portimão, no Algarve. A fotografia e montagem é de Manuel Ruas e a locução de Gomes Ferreira. O filme fazia parte de um projeto de Michel Giacometti, uma série etnográfica para a RTP, que não teve continuidade por motivos económicos. O filme que se lhe seguiria, "Rio de Onor", embora editado não foi terminado, faltando-lhe a locução. Entre 1970 e 1974, Michel Giacometti conseguiria enfim levar a cabo uma série dedicada à música e cultura tradicional portuguesa, o "Povo que Canta", realizada por Alfredo Tropa. A recolha musical registada neste filme, feita em conjunto com Fernando Lopes Graça, seria publicada no quinto volume da Antologia da Música Regional Portuguesa dedicado ao Algarve, e editado pelos Arquivos Sonoros Portugueses
  50. É além disso fortemente provável que haja influência de Jean Rouch no modo de filmar de Giacometti, na medida em que este frequentava o Museu do Homem, em Paris, quando Rouch aí fazia experiências inovadoras na área do filme etnográfico. Tal probabilidade é reforçada pelo uso de um gravador de som Nagra III, modelo desenvolvido por intervenção de Rouch junto fabricante suiço em 1958, modelo esse que o musicólogo usava no seu trabalho de campo
  51. Registo da festa de Santa Cruz na Aldeia da Venda, no concelho de Alandroal, «uma celebração que faz parte do ciclo das Festas de Maio, ou Festas da Primavera, tradição que se perpetua desde a antiguidade.» Produção RTP com realização de Alfredo Tropa
  52. Este filme da festa de Santa Cruz na Aldeia da Venda mostra uma versão diferente do mesmo ritual ilustrado no filme O Pão e o Vinho de Ricardo Costa, filmado em 1983 na vila alentejana do Redondo e de idêntica celebração mostrada anos antes (1962) por Manoel de Oliveira no seu filme Acto da Primavera, filmado na Curalha, no Minho

Ver também editar

Bibliografia editar

Ligações externas editar