Musel I Mamicônio

 Nota: Para outros significados, veja Musel Mamicônio.

Musel I ou Musiles I Mamicônio (em latim: Musel ou Musiles I Mamiconi(us);[1][2] em grego medieval: Μουσίλης Α Μαμιχονι, Mousíles I Mamichoni;[3] em armênio: Մուշեղ Մամիկոնյան; romaniz.:Mušeł Ա Mamikonean; m. em 377/8), dito o Valente, foi um asparapetes (comandante-em-chefe) do Reino da Armênia nos reinados dos reis Papa (r. 370–374) e Varasdates (r. 374–378), bem como o líder de sua família. Tomou parte da resistência armênia contra as forças do xainxá Sapor II (r. 309–379), sobretudo na Batalha da Vagabanta de 371, quando o exército romano-armênio derrotou tropas iranianas na planície de Bagrauandena. Foi regente da Armênia no tempo do jovem e inexperiente Varasdates, que depois suspeitou que representava uma ameaça a seu governo e ordenou sua execução em 377/8. Já foi proposto que seja o Arrabanes citado em Amiano Marcelino, mas a associação é controversa.

Musel I Mamicônio
Musel I Mamicônio
Ilustração do século XIX retratando Musel
Morte 377/8
Etnia Armênio
Progenitores Pai: Bassaces I
Ocupação General
Religião Catolicismo
Dinar de Sapor II (r. 309–379)

Antecedentes editar

Musel era filho do asparapetes armênio (comandante-em-chefe) Bassaces I.[4] Eram da família Mamicônio, que controlava a província de Taique, no noroeste, perto da fronteira com o Reino da Ibéria.[5] O ofício de esparapetes era hereditário entre os Mamicônios,[6] e o mais importante depois do rei.[7] Bassaces er líder do partido pró-romano que apoiava o rei Ársaces II (r. 350–368). No entanto, com a morte do imperador Juliano (r. 361–363) na Batalha de Samarra em 363, as forças romanas se retiraram da Armênia, expondo-a assim ao Império Sassânida. Isso acabou forçando Ársaces, assim como muitos nobres armênios, como Bassaces, a partir à corte persa em Ctesifonte para jurar lealdade ao xainxá Sapor II (r. 309–379). Porém, a recusa de Ársaces em aceitar as exigências de Sapor resultou em sua prisão no Castelo do Esquecimento, enquanto Bassaces foi torturado até a morte.[4] Com a eliminação de Ársaces (que decide se suicidar), Sapor enviou suas forças à Armênia.[8][9]

Biografia editar

A viúva de Ársaces, a rainha Paranzém, organizou a resistência e enviou uma delegação sob o comando de Musel aos romanos para pedir ajuda em nome de seu herdeiro Papa, mas eles estavam relutantes em se envolver na guerra e apoiar a Armênia, que já estava devastada pelas forças iranianas.[10] No inverno de 369/70, após dois anos de cerco, caiu a fortaleza de Artogerassa, e Paranzém foi capturada junto com o tesouro real. As tropas iranianas então marcharam de volta para o Assuristão, e no caminho destruíram várias localidades como Valarsapate, Eruandaxata, Zarixata, Naquichevão, Zareavão e Artaxata. Segundo Fausto, o Bizantino, ao chegarem na Pérsia, o xainxá ordenou que a rainha fosse dada aos soldos e violada até a morte.[11][12]

No meio tempo, Papa havia fugido para o Império Romano, onde foi recebido pelo imperador Valente (r. 364–378) em 378 na cidade de Neocesareia, no Ponto Polemoníaco, a 300 quilômetros da fronteira da Armênia, de onde manteve contato com a sua mãe com o intuito de encorajá-la a resistir até a ajuda chegar.[13] Os iranianos, apoiados por alguns nobres armênios como Baanes, tio de Musel, tentaram impor o zoroastrismo no país, mas tamanha foi a violência empregada que Baanes foi morto por seu filho Samuel.[14] Musel reuniu todos os contingentes remanescentes dos azates (as tropas de elite) e marchou à fronteira romana para se reunir com Papa e pediu a Valente que ajudasse a reinstalá-lo no trono. O imperador consentiu, e em 370/1 designou os generais Terêncio e Arinteu com a tarefa de ajudar os armênios.[15]

 
Armênia e regiões vizinhas no século IV
 
Soldo de Valente (r. 364–378)

Ao chegarem na fronteira, Musel foi nomeado asparapetes[16] e eles foram em busca do católico Narses I, o Grande (r. 353–373), que estava escondido desde a invasão, para que os abençoasse. Em seguida, Musel organizou e equipou os seus contingentes, formando assim um exército de 10 mil homens que apresentou aos generais romanos, Narses e Papa, que lhe deu presentes em reconhecimento a seus esforços. Musel atacou o cantão de Daranália, na província da Armênia Superior, antes de adentrar as terras médias do planalto Armênio, onde matou os generais Zecas e Carano e matou todos os seus soldados. Por fim, retomou todas as terras até a fronteira em Ganzaca, no Azerbaijão.[17] Papa foi instalado, ainda que sem as insígnias reais,[15] e tropas romanas foram distribuídas nos cantões. Musel destruiu os templos zoroastristas e ordenou que todos os masdeístas que encontrassem fossem queimados vivos. Mandou que todos os senhores que se prostraram diante de Sapor em submissão tivessem suas peles arrancadas, enchidas de palha e penduradas nas muralhas das cidades como vingança pela morte de seu pai.[18] Então o país gradualmente começou a se reerguer sob supervisão do rei e do católico, e Musel montou guarda na fronteira com 40 mil homens.[19]

No mesmo ano, Sapor marchou contra a Armênia a partir do Azerbaijão, onde se uniu com um contingente liderado por Meruzanes I do clã Arzerúnio em Gabris (Tabriz, no Azerbaijão Oriental). Musel atacou o acampamento e o destruiu, com Sapor mal podendo escapar a cavalo. O exército persa foi destruído, vários nobres foram mortos e/ou feitos cativos e muito butim foi capturado para ser repartido com os soldados, o rei e os aliados romanos. Os nobres que estavam no pavilhão real, e que totalizavam 600 indivíduos, tiveram suas peles arrancadas, enchidas com palha e enviadas a Papa em vingança pela morte de Bassaces. Já as rainhas de Sapor, que foram deixadas quando ele fugiu, foram tratadas com dignidade e devolvidas junto dos iranianos sobreviventes, o que traria desconfiança entre os nobres e Papa. Em reconhecimento por sua benevolência, Sapor ordenou que uma taça com a representação de Musel montado sobre um cavalo fosse feita e em todas as ocasiões que bebeu vinho nas festividades, a colocou diante de si e, segundo Fausto, dizia: "deixe o cavaleiro do corcel branco beber!".[20]

 
Musel e Papa em Vagabanta segundo manuscrito armênio do século XVI

No inverno, Musel se dirigiu a sua fortaleza de Volando, em Taraunitis, onde recebeu ordens de Papa para executar o hair anônimo que insultou a sua mãe em Artogerassa durante o cerco. Musel o ludibriou solicitando que viesse a Volando para ser muito honrado, e logo que chegou, foi preso pelos guardas, que o deixaram desnudo e amarrado com as mãos junto aos joelhos antes de o lançarem dentro do congelado Arsanias para morrer.[21] Mais tarde no mesmo ano, Sapor ordenou uma nova expedição contra a Armênia fosse lançada a partir do Azerbaijão. Papa marchou com as tropas romanas a Vagabanta, no distrito de Bagrauandena, onde se preparou à chegada de Musel, que trouxe consigo 90 mil homens. Meruzanes, ainda que um aliado persa, enviou a Musel um emissário informando que ele foi prometido como troféu ao rei da Albânia Urnair e que devia tomar cuidado.[22] Papa queria lutar, mas foi convencido por Terêncio a ir para o topo do monte Nepate com Narses. Musel foi ao encontro deles para pedir a bênção do clérigo, mas Papa se recusou a permitir que lutasse, dizendo: "Lembrei que é amigo do rei persa Sapor. Não é Musel que enviou as esposas dele em liteiras e com guardas? E também ouvi que está falando com os persas. Portanto, não o deixe entrar em combate."[23]

Musel pediu a intercessão de Narses, mas o rei se recusou. Narses então foi mais incisivo com seu pedido e o rei se convenceu, desde que Musel jurasse pela mão direita de Narses que não desertaria. Ele foi chamado perante Papa, se prostrou, agarrou a mão direita de Narses e jurou. Em seguida, pegou a mão direita do rei e jurou: "Devo viver e morrer por ti como meus ancestrais por teus ancestrais [e] como meu pai por teu pai Ársaces, isso também devo fazer por ti, mas não dê ouvidos a caluniadores." Papa quis lhe dar seu cavalo de guerra e sua lança, mas Musel não aceitou e disse que "Devo lutar com minhas próprias [armas], e então, ó rei, o que quer que me dê, estou em tuas mãos".[24] O exército combinado armeno-romano venceu os persas na Batalha de Vagabanta,[9][25] na qual Urnair foi ferido por Musel, mas teve permissão de voltar à Albânia com oito cavaleiros. Devido à vitória, Papa deu tesouros, armas, ornamentos, ouro, prata, suprimentos, cavalos, mulas e camelos[26][27] e vários nacarares que desertaram para Sapor nos anos 360, estavam sob o seu controle.[28]

 
Azerbaijão

Rumores de que Musel queria assassinar Papa se espalharam rapidamente, sob alegação de que sempre deixava fugirem os inimigos reais. Papa o repreendeu pela atitude, mas ele alegou que: "Matei todos os meus iguais, mas aqueles que usam a coroa não são meus iguais, mas teus. Vá e mate os teus, e eu matei os meus. Nunca ergui minha mão contra um homem [que é] rei, contra alguém que usa coroa; não a ergo, nem irei. Se desejas matar-me, mate, mas a mim, se alguma vez um rei cair em minhas mãos, como ocorreu muitas vezes, não matarei um rei, alguém que usa coroa, mesmo embora alguém devesse matar-me." As suas palavras convenceram o rei de sua lealdade, e foi recompensado com muitos presentes, honras e aldeias.[29] Pouco depois, em consideração por ter sido poupado, Urnair enviou mensagem a Musel informando da movimentação de tropas persas na fronteira da Armênia com o Azerbaijão. O general dirigiu seu contingente de 90 mil homens à fronteira, e com ajuda dos romanos derrotou decisivamente Sapor e suas tropas em mais de uma batalha. Cílaces foi deixado como guarda da fronteira em Ganzaca por Musel e Terêncio, que então retornaram à corte real.[30]

Pouco depois, a paz foi alcançada com a Pérsia e Musel pôde se dedicar a combater os nobres que se rebelaram contra a dinastia dos arsácidas. Primeiro invadiu o domínio real no Azerbaijão, que forçou a pagar tributo e de onde obteve vários prisioneiros. Na sequência, repetiu seus feitos no Reino de Adiabena, na província de Artisaquena, nos distritos de Tamoritis, Corduena e Codritom em Gordiena, no distrito de Basoropeda em Vaspuracânia e nas satrapias de Sofanena, Ingilena, Anzitena e Arzanena da futura Armênia Quarta; especificamente em Arzanena, capturou o vitaxa, matou suas esposas na sua frente e capturou seus filhos antes de deixar osticanos supervisando o país. Também invadiu a província de Caspiana, e sobretudo sua cidade de Paitacarão, onde decapitou muitos, prendeu outros tantos e fez mais alguns de reféns, impôs tributo e deixou osticanos como supervisores.[31]

 
Representação moderna de Varasdates

Por fim, invadiu os Reinos da Ibéria e Albânia: no primeiro, matou os seus azates, crucificou os membros da dinastia farnabázida, decapitou todos os nacarares ali refugiados e recapturou a província de Gogarena antes de decapitar o vitaxa, matar os homens de seu clã e capturar suas esposas e filhas; na segunda reconquistou a província de Otena e seus distritos de Sacasena e Gardamana e o distrito de Coltena em Vaspuracânia. Estas invasões restauraram a fronteiro ibero-armeno-albanesa nas margens do rio Ciro.[31] No rescaldo dos conflitos, Sapor II, tentando recuperar sua influência sobre a Armênia, enviou embaixadas que fizeram Papa considerar os romanos com desconfiança, apesar do esforço de Musel para evitar a ruptura com o Império Romano. Em 374, a pedido de Valente, Trajano assassinou Papa[32] e o substitui por Varasdates (r. 374–378), sobrinho de Ársaces. Musel tornou-se mentor do jovem rei. Mas o rei, influenciado, e cada vez mais dependente da opinião dos nobres, acusou Musel de ser cúmplice na morte de Papa e solicitou que Batis Sarones o executasse num banquete. Vache II foi nomeado chefe dos Mamicônios e Batis Sarones asparapetes.[33] Após sua morte, sua família e parentes colocaram seu corpo em uma alta torre, acreditando que os espíritos desceriam e o trariam de volta à vida.[34]

Avaliação editar

Nicholas Adontz e J. Markwart sugeriram que fosse o Arrabanes citado em Amiano Marcelino, pois ambos eram oficiais militares, lideraram negociações com Valente que resultaram no retorno de Papa à Armênia e foram acusados de traição,[35][36] mas a associação causa disputa; Noel Lenski propôs que Arrabanes seja o Baanes, o Apóstata da obra de Fausto,[37] e Ferdinand Justi propôs associá-lo com o Carano citado pelo mesmo autor.[38]

Referências

  1. Caetani 1914, p. 380.
  2. Combefis 1648, p. 279-280.
  3. Jorge do Chipre 1890, p. 57, nota 1.
  4. a b Grousset 1947, p. 138-143.
  5. Toumanoff 1961, p. 56.
  6. Garsoian 2000.
  7. Rapp 2014, p. 76.
  8. Daryaee 2014, p. 19.
  9. a b Chaumont 1986, p. 418–438.
  10. Grousset 1947, p. 143-147.
  11. Lenski 2002, p. 172.
  12. Fausto, o Bizantino 1989, p. 173-176.
  13. Lenski 2002, p. 171-172.
  14. Grousset 1947, p. 141-145.
  15. a b Martindale 1971, p. 103; 881-882.
  16. Fausto, o Bizantino 1989, p. 185.
  17. Fausto, o Bizantino 1989, p. 186.
  18. Fausto, o Bizantino 1989, p. 186-187.
  19. Fausto, o Bizantino 1989, p. 187.
  20. Fausto, o Bizantino 1989, p. 187-188.
  21. Fausto, o Bizantino 1989, p. 188-189.
  22. Fausto, o Bizantino 1989, p. 189-190.
  23. Fausto, o Bizantino 1989, p. 190.
  24. Fausto, o Bizantino 1989, p. 190-191.
  25. Lenski 2002, p. 175.
  26. Fausto, o Bizantino 1989, p. 193.
  27. Chaumont 1985, p. 806–810.
  28. Lenski 2002, p. 177.
  29. Fausto, o Bizantino 1989, p. 193-194.
  30. Fausto, o Bizantino 1989, p. 194-196.
  31. a b Fausto, o Bizantino 1989, p. 199-201.
  32. Amiano Marcelino 397, p. XXX.1.18-21.
  33. Grousset 1947, p. 147-154.
  34. Boyajian 1958, p. 170.
  35. Adontz 1970, p. 513.
  36. Lenski 2002, p. 382.
  37. Lenski 2002, p. 171.
  38. Fausto, o Bizantino 1989, p. 383.

Bibliografia editar

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